Há
exatamente um ano, a minha base tremeu quando aguardava que te restabelecesses,
como qualquer criança a recuperar de uma virose, e isso tardava em acontecer...
O
meu coração apertadinho de mãe lá ligou à tua pediatra, que não desvalorizou e
disse que era melhor vermos um médico de urgência. Aparentemente, uma virose
teimosa, mas o meu coração torturado por te ver arder em febre quando já devia
estar a baixar, não se conformava. Numa avaliação mais profunda, já por volta
da meia noite, um diagnóstico arriscado pela Pediatra de Serviço da CUF, só com
base na sintomatologia que tinha entretanto evoluído, que nos diz que precisas
de uma avaliação ecográfica urgente, que só um hospital no Porto faria àquela
hora, o HSJ, e ainda assim só até à 1h da manhã, caso contrário só na manhã do
dia seguinte (isto dava matéria para outra conversa, mas não me vou centrar
nisso), cabia-nos decidir se queríamos tentar mesmo assim.
Como
olhar para o teu desespero a contorceres-te em dores violentas, seguido de um
estado invulgar de letargia, e não tentar tudo? Pedi uma carta à médica para
entregar lá e voamos para o HSJ. Faltavam 5 minutos para a 1h da manhã e eu
irrompi contigo em braços, quase me negaram a possibilidade de fazer os exames
porque ia fechar, mas não me dei por vencida e insisti, insisti tanto que
saltamos à triagem sem nem abrir a tua ficha cá fora. E quando leram a carta...
tudo mudou.
Nem
nós sabíamos como podia mudar.
De
repente, em passo acelerado, todas as portas se abriram de par em par e fomos
conduzidas até à sala de observações da cirurgia pediátrica.
De
repente, começaram os telefonemas entre colegas e a médica que fazia o tal exame,
que até já se ia embora porque neste intervalo de tempo era já 01h15, voltou
atrás e, mesmo sem bata, veio porque tu precisavas. E como precisavas... em 5
minutos o diagnóstico que confirmava a suspeita levantada na carta. Ainda sem
perceber bem a gravidade, a minha cabeça a mil apanhava fragmentos do diálogo
entre os 4 médicos que tinha à minha frente e o chão fugia-me debaixo dos pés.
Atónita, olhava para ti, a arder em febre que alternavas entre a prostração e
os gritos de dor, e ouvia o cirurgião poucos minutos depois explicar-me que
precisavas de um procedimento de urgência, em que consistia o procedimento e a tentar
fazer-me entender que era seguro e que iria correr bem mas, e há sempre um “mas”,
tinhas que ir ao bloco de urgência e para isso precisava de assinar um termo de
responsabilidade e de avançar com o internamento.
Na
minha cabeça só ecoava o “Assim que
tivermos uma sala de cirurgia vaga, ela vai ao Bloco” e eu só pensava “hã...mas...ao Bloco? Cirurgia? O QUÊ???”.
Por dentro gritava, por fora olhava para ti e não me podia permitir ir abaixo,
passar-te a minha tristeza, porque TU precisavas de mim, mais do que em
qualquer outro momento daqueles 11 meses de existência.
E
agora?
Explicar
ao teu pai, do lado de fora da urgência e sem permissão para entrar, o que nem
eu, perdida no meio de um turbilhão de pensamentos e angústia, conseguia
entender. Pegar no telefone e falar com a família preocupada, se a voz não me
saía, se não conseguia processar o que estava a acontecer e muito menos ser
coerente?
Às
2h30 vieram chamar-nos, estavam a preparar a sala de cirurgia para ti. Deixaram
o teu pai entrar para te ver e dar um beijinho e nos acompanhar até ao Bloco.
Enquanto
esperávamos, o meu coração ficava cada vez mais e mais esmagado e não há, não
pode haver palavras que descrevam o momento em que tive que te entregar no colo
da enfermeira para que te levasse para dentro, onde eu já não podia estar, onde
não me permitiam estar. Felizmente, naquele instante dormias profundamente
e não percebeste, não choraste quando te levaram mas, ver-te desaparecer por aquele corredor assim doente, num colo que não era o meu, entregue a tantos desconhecidos, transformou-se no pior pesadelo da minha vida e eu, que me tentava segurar e
dar-te conforto, explodi de uma vez e chorei, chorei e chorei ali naquela sala
de espera, angustiada, de braços vazios, sempre à espera que as portas abrissem
e aparecesse alguém da equipa que te ia acompanhar.
Mas
os minutos pareciam horas e as horas pareciam dias, os mais longos de sempre, e
naquele entra e sai de gente, nunca mais chegava a tua vez. Pelas 4h da manhã
aparece uma enfermeira que reconheci e me fez saltar imediatamente da cadeira.
Numa expressão neutra e indecifrável, foi abrindo as portas para que uma cama
pudesse passar e disse finalmente “Correu
bem, mas ela agora vai dormir até amanhã e vai ficar no recobro algum tempo”.
Respirei pela primeira vez com uma pontinha de alívio, mas só quando te visse
me sentiria melhor. Felizmente, esse momento já não tardou e tu, que
supostamente ias dormir o resto da madrugada, estavas já acordada e a
resmungar.
Quando passaste por mim e te disse “Filha!”, viraste a cabecinha
numa expressão entre o alívio e o choramingo, como se estivesses a fazer
queixinha de te ter deixado entre desconhecidos. Ainda assim, tive que esperar
do lado de fora do recobro, entraste e eu fiquei na sala ao lado...podia
ouvir-te chorar, a forma que os teus 11 meses te permitiam expressar a minha
ausência, que agonia!
Quando
finalmente todo esse processo acabou, deixaram-me ir ter contigo, agarrei-te
com força e juntas ali ficamos, naquela sala de OBS da urgência do HSJ.
Dormir
não era uma possibilidade, pois claro que não, contigo a querer arrancar o
emaranhado de fios a que estavas ligada, desde o peito até aos dedos dos pés,
tinha que te ter no colo para que não o fizesses e não, também não querias que
me sentasse, querias que estivesse de pé, a andar de um lado para o outro, na
extensão permitida pelos fios, e eu só queria que estivesses calma tanto quanto
possível, depois de tudo o que passaste e da anestesia, e assim fiz. Também não
havia sono, a cabeça dava mil voltas, os bipes das máquinas eram incessantes, a
luz estava acesa e todas aquelas crianças em volta não estavam em sintonia no
que tocava a dormir/acordar a que se somavam os horários apertados da tua
medicação. Não havia fome. Também se houvesse, paciência, porque o HSJ não
serve refeição, nem um café, aos acompanhantes e sair da tua beira não era
opção para mim. Aliás, só quando o teu pai veio de manhã para te ver, pude ir
ao wc, porque até então não te consegui deixar novamente sozinha. Só a ideia de
olhares para o lado, ainda que por breves instantes, e te sentires abandonada,
comandava todo o meu corpo para se comportar como eu queria, não foi preciso.
Também não podíamos estar os dois contigo porque em menos de 5 minutos lá vinha
alguém dizer “só pode estar um, o outro tem que sair” e, claro, o teu pai
compreendia que era eu que tinha que estar ali contigo.
Quando
finalmente tiveste alta, fomos para casa. A minha sensação era de completa
insegurança, mantinhas a temperatura alta e, por mais que me dissessem que
levava o seu tempo e estivesses bem mais serena, em certas alturas bem-disposta
até, eu sentia algo estranho. Quando começaste a ter sintomas mais invulgares
novamente, mais uma vez liguei à tua Pediatra (tantas vezes que me aturou
naqueles dias, tantas vezes que foi o nosso porto de abrigo!). A resposta não
podia ser mais esclarecedora “Tem que
voltar para o hospital. Pode ir à CUF ou ao HSJ, mas tem que ir.” Era o que o meu coração me mandava fazer também, mas ouvir esta indicação sem qualquer hesitação foi um baque! Novamente fomos ao
HSJ (contra a vontade do teu pai, que queria poder estar mais presente) pois ali tinham tratado de ti e estava o teu historial
clínico do episódio recente. Foi por este episódio que passamos à frente na triagem,
suspeita de reincidência, e novamente visitamos aqueles corredores da cirurgia
pediátrica onde, para espanto dos próprios, encontraste a mesma equipa que
tinha tratado de ti menos de 48h antes. Novamente foste fazer o exame,
novamente a mesma médica, agora a sós, sem o aparato da primeira vez, que te
reconheceu e disse já ter perguntado aos colegas como tinha corrido a tua
cirurgia. Eis que no decurso do exame vem o murro no estômago, aquilo que eu
não queria ouvir... confirmava-se a reincidência.
De repente recuei 1,5 dia e
revivi tudo, só que com desespero acumulado. Desta vez a técnica usada iria
ser diferente (até porque, mesmo sendo domingo, o horário era diferente e,
logo, tinham mais meios disponíveis), não te queriam anestesiar novamente, e,
portanto, permitiam a minha presença para te tentar acalmar e confortar.
Vou-me
escusar a escrever sobre os pormenores desse novo procedimento, porque se tudo
isto já é doloroso, reviver aqueles momentos é o auge desse sofrimento, para ti
e para mim, mas o que interessava eras tu e eu não conseguia evitar que tu
sofresses quando olhavas para mim desesperada a chorar, como se me dissesses “porque
é que me deixas passar por isto”. Quando finalmente terminaram, bem-sucedidos, queria
acreditar que desta vez ias mesmo ficar bem, mas tínhamos ainda um longo processo
pela frente....
Mandei SMS à tua pediatra a dar conta do teu estado e dos últimos
desenvolvimentos, que de imediato me ligou a saber detalhes. Mais uma vez conseguiu
me acalmar e explicar como habitualmente se comporta o corpo em casos como o
teu, o lado mais sereno que me dava a segurança que me faltava para enfrentar
tudo. Alguns minutos depois, vem um médico da equipa reavaliar-te
e diz “a pediatra da sua filha ligou, não se preocupe Mãe, ela vai ficar bem”.
Mais uma noite, desta vez o problema não eram os fios, mas puseram-te numa cama
de crescidos, o que significa que, mesmo que quisesse, não poderia adormecer
porque agitada como estavas, o risco de caíres da cama era total. Não tinham
outra, mais adaptada e portanto estávamos sem opções.
As tuas dores eram muitas
e iriam continuar pelo menos durante 1 semana, mas ali, eram demasiadas para um
ser tão pequenino e por isso choraste e contorceste-te toda a noite,
incessantemente. Choravas sem parar e dizias na tua língua “num qué” (não
quero) e abanavas a cabeça a dizer que não. E eu sentia-me desfazer por dentro.
Sentia-me fracassar porque nem todo o amor e mimo do mundo te tiravam aquelas
malditas dores. Só te acalmava ligeiramente, tal como a exaustão que se
apoderava de vez em quando, mas elas não te deixavam em paz e tu não conseguias
parar de chorar por muito tempo. Olhava para os restantes pacientes e
acompanhantes na sala e pouco conseguiam dormir com os teus gritos. De manhã,
por volta das 7h, quando, extenuada, adormeceste um pouco, eu fui ao lixo a
poucos metros e passei por outras camas cruzando o olhar com outras mães quando a do lado abana a cabeça e me diz “Você deve estar de
rastos...” numa atitude de empatia de quem percebia que pior do que não dormir
era ver uma filha chorar a noite toda e não conseguir evitar.
De facto...
estava de rastos, esgotada, mas não por estar acordada, sentia-me desperta
e naquele momento sentia-me respirar porque tu tinhas adormecido um pouco e significava
que as dores te tinham dado tréguas. Isso para mim valia mais do que dormir o
tempo que fosse, enquanto a privação de sono não me toldasse o discernimento. A
meio da manhã, a visita mais esperada, a visita da tua Pediatra que atravessou o
hospital para te ver e avaliar minuciosamente antes que fosses para casa. Depois
de algumas recomendações, deu-me um abraço apertado, sentido, e disse-me “já
passou o pior, agora vai ficar tudo bem”.
Na
verdade, aquela estadia no hospital significou nova virose, contraída lá, e
nova visita ao hospital, desta vez à CUF onde, mais uma vez, ela te avaliou,
medicou e me tranquilizou. Mas sim, ela tinha razão, semanas depois felizmente ficou tudo bem e passou a um (terrível) episódio sem consequências...
Porque
é que um ano depois estou a escrever sobre isto?
Porque ao longo deste ano que
passou, muitas foram as vezes que todos estes momentos me vieram à memória.
Porque
muitas foram as lágrimas que escorreram, ainda escorrem, ao olhar
para ti e lembrar-me de cada momento tão sofrido e duro que passamos.
Porque
de alguma forma preciso de escrever sobre isto, sobre aquele momento que
vivemos e que só do ponto de vista clínico fui falando na altura.
Porque
muitas vezes se fala dos profissionais de saúde e dos hospitais de forma
depreciativa, crítica e também há o outro lado. Se do ponto de vista de suporte haveria muito a dizer, do ponto
de vista clínico, o único que interessa em circunstâncias destas, só posso
erguer as mãos pela eficácia e sintonia de privado e público. Foi na CUF que
suspeitaram do que tinhas e reagiram com proactividade, sabendo que ao fim de
semana há limitações naturais dos privados e alguns públicos e que estas não podem
comprometer a saúde de um paciente, aconselhando-nos o HSJ. Foi no HSJ que
diagnosticaram e trataram de ti, de ambas as vezes, no espaço de um par de
horas.
Mas é à tua pediatra que devo um agradecimento especial. A qualquer
local que me dirigisse (ou que me perguntassem, ou que deliberadamente o
dissesse) assim que mencionava o nome dela só me diziam “Ah! Está muito bem
entregue!”. No HSJ acompanhou sempre tudo, mesmo não estando de serviço, na CUF
igualmente. Confirmei o que já sabia e que me fez decidir que seria ela a
acompanhar-te ainda antes de nasceres (e quis o destino que, por coincidência,
fosse a neonatologista que acompanhou o teu parto na CUF). Atendeu-me sempre. Nunca
desvalorizou, nunca alarmou excessivamente. Foi sempre correta e transparente,
clara, objetiva e muito HUMANA.
Porque
devo um agradecimento à nossa família, em especial à tua avó que, mesmo não
podendo entrar (nem o teu pai podia), ficava ali do lado de fora da urgência
sentada com o teu pai, consciente que nada podia fazer, que não havia a
remota possibilidade de te ver, ou a mim, mas só para se sentir próxima de nós.
Porque se sentia parte daquela situação e queria estar perto.
Aos
teus tios, por todo o carinho e preocupação que involuntariamente lhes
causamos. Sabes, eles foram os primeiros a saber o que se passava, ainda
durante a madrugada, porque eu não conseguia falar por telefone mas ia falando
por escrito com o teu tio para de alguma forma me sentir mais calma, e eles estiveram sempre presentes e disponíveis.
Aos
teus padrinhos e primos, sempre atentos, sempre a ligar para perguntar por ti,
disponíveis também para o que fosse, preocupados contigo.
Às amigas do grupinho de
mamãs que, graças à minha gravidez de ti, conheci, e que constantemente queriam saber e se preocupavam contigo.
Aos patrões da mamã, sempre atentos, com vidas tão ocupadas mas que encontravam sempre um tempinho para me ligar ou escrever a saber de ti, a libertar-me de qualquer peso de responsabilidade que sentisse para com o facto de estar ausente do trabalho. Eles sabiam o motivo, mas sei que há patrões que só se centram nas ausências e não nos motivos. Nunca foi o caso deles, aliás, desde que souberam da gravidez da mamã, não tive senão carinho, atenção, preocupação e disponibilidade genuínos. E tanto que isso significou naquele momento frágil!
A
todos os amigos que foram sabendo e se juntaram a nós na preocupação e carinho, mesmo
quando, felizmente, já recuperavas e o pesadelo ficava para trás.
Porque
hoje, com mais força do que antes de tudo isto, sinto um profundo respeito e
solidariedade para com todos os pais e meninos que passam por casos bem mais graves
e permanentes do que o teu (e ergo as mãos a Deus por ter sido um episódio sem
consequências!), porque não, não é fácil ter um filho doente, não consigo
sequer imaginar os calcanhares de todos os guerreiros e guerreiras que pelo
mundo fora enfrentam os hospitais todos os dias.
Que Deus os abençoe e como seria bom que os curasse todos.
Há
momentos que nos mostram a intensidade da força do Amor.
Não se explica, não se
verbaliza o suficiente, sente-se, vive-se e eu...
AMO-TE além da Vida minha princesa!